Quem leu a coluna anterior lembra-se da estrutura do transistor planar, inventado por Jean Hoerni nos anos cinquenta do século passado, cuja ideia essencial consistiu em integrar as três partes que compõem um transistor, emissor, coletor e base, em uma única peça plana de cristal.
Se você reparar bem na Figura 3 da coluna anterior que mostra o diagrama esquemático do transistor planar verá que o transistor propriamente dito, ou seja, as regiões constituídas de materiais “N”, “P” e “N”, são fundidas em uma única placa de material semicondutor, germânio ou silício. E que, sobre elas, estão aplicados os três terminais, assinalados por “E” (emissor), “B” (base) e “C” (coletor).
Foi esta ideia que inspirou a invenção do circuito integrado (ou “CI”, ou ainda “chip”). Um dispositivo tão revolucionário que levou Jack Kilby, um de seus inventores, a afirmar, alguns anos mais tarde, que “o que nós não percebemos na ocasião é que os circuitos integrados reduziriam os custos de dispositivos eletrônicos um milhão de vezes, algo que jamais tinha sido feito antes para qualquer outra coisa” (“What we didn’t realize then was that the integrated circuit would reduce the cost of electronic functions by a factor of a million to one, nothing had ever done that for anything before”).
Vamos ver como isto foi possível.
Examine novamente a representação esquemática do transistor planar na coluna anterior e perceba que a parte fundamental é o transistor, na base da figura. É ele o protagonista, o responsável pelo controle da corrente elétrica, o dispositivo que revolucionou a sociedade moderna. Perto deles, os terminais não passam de figurantes de segunda classe, elementos passivos que nada fazem exceto aplicar tensões e conduzir corrente sob o comando do transistor. E assim é de fato. O problema é que, sem estes figurantes, o protagonista de nada serve. Como usar um dispositivo que controla corrente se esta corrente não pode ser transportada para fora dele?
Portanto, um transistor planar que pode ser muito – mas muito mesmo – menor que um milímetro, acaba contido em um encapsulamento de quase um centímetro devido à necessidade de incluir os terminais metálicos que o ligarão às demais partes do circuito. Veja, na Figura 1, as proporções relativas aproximadas entre o transistor propriamente dito, aquela pequena peça menor que um grão de arroz no centro do encapsulamento, e o dispositivo inteiro, com os terminais metálicos saindo do invólucro para serem soldados à placa de circuito impresso abaixo dele. E não pense que há um grande desperdício de espaço, já que claramente o encapsulamento poderia ser muito menor. Não há, e por razões práticas: sendo ele muito menor, como um técnico poderia manejá-lo para encaixar seus terminais nos pequenos orifícios da placa de circuito impresso? Como fazer as soldas sem que o excesso de calor danificasse os componentes ativos? Como manipular um objeto milimétrico para fazer as montagens?
1 de 2 Figura 1: Diagrama esquemático de um transistor — Foto: TechTudo Figura 1: Diagrama esquemático de um transistor — Foto: TechTudo
Jack Kilby era um especialista em projeto de moldes usando a técnica de “silk-screen” para a confecção de placas de circuito impresso. Era julho de 1958, auge do verão nos EUA e mês em que tradicionalmente todos gozam férias e Kilby, recém-contratado pela Texas Instrument, ainda não tinha tempo de casa suficiente para gozar as suas. Nem tinha acumulado experiência no novo emprego para já ter suas tarefas de rotina. Por isto passava a maior parte do tempo perambulando pelas salas e corredores quase vazios da ala de escritórios da fábrica da TI, no Texas.
E pensando.
Um dia seu pensamento se voltou para a concepção do transistor planar. Ora, pensou ele, se todo um transistor pode ser fabricado diretamente em uma placa de cristal semicondutor, por que não incluir neste mesmo cristal os componentes auxiliares, como resistores e capacitores? O problema, naturalmente, seria como criar estes componentes no cristal e interliga-los, mas isto poderia ser feito seja alterando as características do cristal, seja agregando outros materiais. Caso isto fosse factível, o resultado seria todo um circuito composto de diversos transistores com seus terminais interligados por condutores elétricos que por sua vez poderiam ser ligados a capacitores e resistores, tudo isto no interior de um único cristal do tamanho, digamos, de uma unha.
Quer dizer: teríamos então todo um circuito elétrico, que até então exigiria a solda de todos estes componentes em uma placa de circuito impresso, contido em um pequeno objeto, um cristal de silício que incorporava a totalidade dos componentes do circuito. A miniaturização seria extraordinária.
Jack pensou e disse: propôs a pesquisa para seu chefe imediato que o autorizou a prosseguir. Dois meses depois ele já havia produzido o primeiro protótipo, que batizou de “circuito sólido” (“solid circuit”). O resultado foi a peça que grandemente ampliada (seu tamanho natural é de 1,6mm x 11,1, mais ou menos o tamanho de uma ponta de lápis) é mostrada na figura 2, obtida na Wikipedia.
2 de 2 Figura 2: protótipo do CI de Kilby — Foto: TechTudo Figura 2: protótipo do CI de Kilby — Foto: TechTudo
O protótipo foi testado, mostrou-se funcional, sofreu alguns aperfeiçoamentos e em seis de fevereiro de 1959 a Texas Instrument preencheu uma solicitação de patente. Em março daquele mesmo ano apresentou o dispositivo ao público.
Porém…
Bem, em um campo que evoluía tão dramaticamente quanto o dos componentes em estado sólido em meados do século passado, seria de estranhar que apenas uma pessoa tivesse pensado na mesma solução.
E assim foi no caso dos CI. Enquanto Kirby elucubrava suas ideias no Texas, não muito longe dali, na Califórnia, um cavalheiro chamado Robert Noyce, que um ano antes havia fundado a Fairchild Semicondutors e dez anos depois, com Gordon Moore, fundaria a Intel, também se preocupava com o mesmo problema. E chegou, como seria de esperar, a uma conclusão quase idêntica. As diferenças essenciais é que enquanto Kilby usava Germânio como cristal base de seus circuitos, Noyce usava silício. E enquanto Kilby dedicava maior atenção à concepção dos componentes elétricos internos do CI, Noyce se dedicava a descobrir – e de fato descobriu – uma forma mais eficiente de efetuar as conexões internas.
Noyce batizou seu invento de “circuito unitário” (“unitary circuit”) e também solicitou sua patente. Como sabia que a Texas Instrument já havia solicitado uma patente de algo parecido, Noyce se esmerou nos detalhes de seu invento, o que tornou a análise muito mais rápida. O que de fato funcionou: em 25 de abril de 1961 o escritório de patentes americano concedeu a Robert Noyce a patente do primeiro circuito integrado, enquanto a solicitação de Kirby ainda estava sendo analisada.
É claro que isto gerou uma batalha legal que poderia alcançar proporções gigantescas e atrasar o desenvolvimento da tecnologia por anos a fio, já que não havia má fé de nenhuma das partes, posto que não há qualquer dúvida que os inventores trabalharam independentemente para chegar a um resultado quase idêntico. Mas a guerra não prosseguiu: ambas as empresas tiveram o bom senso de permitir licenças cruzadas de suas tecnologias e em 1961 o primeiro circuito impresso foi liberado para venda pela Fairchild Semiconductors. A partir de então todos os computadores passaram a usar CIs em vez de componentes individuais e eles passaram a ser desenvolvidos em massa para equipar desde pequenas calculadoras eletrônicas até mísseis balísticos como o Minutemen.
Inaugurava-se assim a era dos circuitos integrados.
Mas como eram fabricados? Afinal, montar um complexo circuito elétrico no interior de uma única peça não haveria de ser tarefa fácil.
E não era.
A resposta, por peculiar que possa parecer, estava na indústria dos biscoitos.
Como veremos na próxima coluna.
B, Piropo
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